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13 de janeiro de 2024

 

ALMIR DE SOUZA CRUZ[1]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O IMPACTO DA MODERNIDADE LIQUIDA NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O IMPACTO DA MODERNIDADE LIQUIDA NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

São Paulo, 2023.

RESUMO

 

Vivemos tempos de profundas mudanças sociais. O erudito Michel Maffesoli chamou de Pós-modernidade. Já o sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, preferiu o termo “modernidade liquida” para explicar estas mudanças rápidas em diversas áreas da sociedade. Cada tempo histórico tem seus processos transicionais. Este é um tempo de mudanças, mudanças rápidas. A liquidez social, segundo Bauman, tem impactado diversas áreas da vida. Na educação, ela tem afetado alguns dos principais atores do processo de aprendizagem, a saber: os professores e os alunos. Ambos precisam aprender sempre porque as situações da vida líquida requerem um contínuo processo de adequação e a velocidade das informações requerem uma contínua adequação a novos conceitos, isto é, os educadores e educandos precisam desenvolver cada vez mais a capacidade de aprender sempre, ou seja, aprender para a vida toda.

Palavras-chave: pós-modernidade. Modernidade liquida. Ensino-Aprendizagem. Bauman.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

A pesquisa é relevante diante do fato que aborda a questão da aprendizagem na Modernidade Líquida. Percebe-se que estamos diante de uma crise na educação em virtude do processo histórico de transição num mundo cada vez mais “fluido e liquidificado”, cada vez mais tecnológico. O mundo atual é um mundo de mudanças rápidas que requerem uma adequação contínua diante destas mudanças velozes. Deste modo, os atores do processo de aprendizagem devem estar prontos para o processo de moldagem contínua neste mundo liquido. Neste artigo, portanto, exploraremos o impacto da modernidade líquida na formação continuada de professores. Abordaremos as mudanças ocorridas na sociedade em relação ao conhecimento e à informação, a necessidade de atualização constante dos professores e os desafios enfrentados na era líquida. Também discutiremos as novas abordagens e ferramentas na formação continuada de professores.

Este artigo foi desenvolvido a partir de pesquisas bibliográficas. Foram considerados e utilizados em sua elaboração, livros e artigos de periódicos em língua portuguesa que tratam aspectos que estão relacionados ao tema “Os impactos da Modernidade Liquida na formação continuada de professores. Ou seja, o processo de aprendizagem no contexto social conhecido na contemporaneidade como “modernidade liquida”. Também, serão utilizados trabalhos escritos e divulgados em sites da Internet que sejam relevantes sobre educação, ensino e cultura e subjetividade na Modernidade Liquida.

 

 

1.1.    As mudanças na sociedade em relação ao conhecimento e a informação.

 

1.2.    A vida na modernidade liquida.

 

Mudanças sociais não são novidade na história da humanidade. Em cada época, a humanidade vive tempos contínuos de transição que implicam em profundas mudanças sociais. Na historiografia eurocêntrica, por exemplo, percebem-se mudanças que receberam nomes diversos tais como, Idade da Pedra, Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea. Nota-se, portanto, que os nomes atribuídos aos períodos de tempo em foco, são oriundos do fato que eles apresentaram certas características que implicaram em mudanças culturais significativas com processos transicionais em relação ao período precedente. Eruditos como Michel Maffesoli, sociólogo francês, conhecido sobretudo pela popularização do conceito de tribo urbana, nas últimas décadas, perceberam mudanças significativas na estrutura da sociedade, as quais chamaram de pós-modernidade. Ademais, percebe-se que a perspectiva pós-moderna molda cada vez mais a nossa sociedade. Segundo Maffesoli, “O que faz a cultura é a opinião, o pensamento do espaço público, que constituem o cimento emocional da socialidade. ” (MAFFESOLI, 2006). Neste sentido, a pós-modernidade, é uma cultura que tendo emergido nas últimas décadas estabelece uma visão de verdade distinta da época precedente. Ela, portanto, é compreendida como uma estrutura sociocultural caracterizada pela globalização e pelo sistema capitalista e nela, verificaram-se consideráveis mudanças. Logo, a consciência pós-moderna implica necessariamente num tipo radical de pluralismo e relativismo. Deste modo, ela constitui uma ruptura em relação às suposições do passado moderno que a precedeu. Charles Jenks, um destes escritores mais antigos que procurou definir a pós-modernidade, afirmou que,

O pós-modernismo é fundamentalmente, a mistura eclética de uma tradição qualquer com a tradição do passado imediato: é, a um só tempo, a continuação do modernismo e sua transcendência. Suas melhores obras têm como característica a duplicidade de códigos e a ironia, a padronização de um amplo espectro de opções, o conflito e a descontinuidade das tradições, porque é a heterogeneidade que capta com maior clareza nosso pluralismo. (JENKS, 1989)

Ademais, outras questões relevantes puderam ser percebidas no contexto da sociedade pós-moderna, tais como o foco social mudado do indivíduo para a comunidade, ou seja, a tribo urbana em que o indivíduo está inserido passa a ter o foco principal. Já no contexto do conhecimento, a mudança se deu passando-se da verdade objetiva para a subjetiva, na qual se deu mais espaço culturalmente às questões subjetivas e a subjetividade. Por outro lado, passou-se na pós-modernidade da primazia das palavras para a importância fundamental das sensações produzidas pelas imagens, nas quais se observa a prioridade da imagem em relação ao texto. Além disso, percebeu-se uma mudança contextual da meta-narrativa do período precedente para momento de prevalência da micronarrativa. Deste modo, os pós-modernistas, sentem-se bem confortáveis em suas produções sociais ao misturarem questões tradicionalmente incompatíveis. Pós-modernidade, portanto, foi o termo utilizado para definir e explicar o comportamento social da contemporaneidade. 

Por outro lado, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, após ter mergulhado nas questões referentes a pós modernidade, abandonou este conceito, preferindo a utilização do termo “modernidade liquida” para explicar estas mudanças profundas em diversas áreas da sociedade seja no campo sociológico ou filosófico. O termo modernidade liquida está associado metaforicamente ao fato que os líquidos não possuem forma e podem deslizar facilmente de um canto para outro num certo recipiente. Eles se amoldam a todo e qualquer ambiente em que estiverem colocados, logo, esta condição traz a ideia metafórica de adaptação constante no que concerne a vida humana nos seus mais diversos aspectos. Ao ser entrevistado em Educação e Juventude Bauman afirmou que:

Um espectro paira sobre os cidadãos do mundo líquido-moderno em todos os seus esforços e criações: o espectro da superfluidez. A modernidade líquida é uma civilização do excesso, da redundância, do dejeto e do seu descarte. (Bauman, 2013).

 

A modernidade liquida, portanto, é uma expressão metafórica usada para descrever os tempos atuais. Refere-se ao fato que os líquidos não têm formas e se moldam a forma do recipiente. Neste sentido, Bauman, descreve as transformações sociais pelas quais a sociedade contemporânea tem passado nos mais diversos aspectos da vida, apresentando as consequências nos relacionamentos humanos por meio da metáfora de um mundo “fluido e liquidificado” em contraposição à modernidade sólida e estática do período precedente. Trata-se de um tempo de transformações sociais aceleradas, de desapego ao passado e da provisoriedade das coisas. Da individualização e do desprendimento das redes de pertencimento e da tribalização social. Percebem-se, nestes tempos líquidos, relacionamentos voláteis e fluidos como manifestação da liberdade individual. E, como consequência desta individualidade própria da vida liquida, depressão, solidão e individualismo.

Em seu livro “modernidade liquida”, Bauman analisou a sociedade em suas relações sociais desde quando começou a modernidade até os dias de hoje. Ele dividiu a modernidade em duas fases, a saber: a modernidade sólida e liquida. Na modernidade sólida, as mudanças eram ordenadas, previsíveis e estáveis. Porém, houve um processo de transição no qual os Estados perderam influência frente ao papel das empresas transnacionais, ou seja, o poder de influenciar que era predominantemente do Estado passou a ser compartilhado com as empresas multinacionais.

O surgimento da internet pressionou a humanidade e aquiesceu-lhe trazendo-lhe mudanças impressionantes, as quais, obrigaram a sociedade no caminho da velocidade da informação e da fluidez. Logo, a globalização trouxe um estado de coisas fluido no qual mudanças e incertezas passaram a caracterizar o mundo liquido em que a sociedade estaria inserida. A visão metafórica da modernidade liquida pressupõe que tudo se dissolve e se desfaz no caminho e pode tomar qualquer forma. Neste sentido, observa-se um novo contexto em que valores, crenças e tradições tornam-se mutáveis e voláteis. As coisas rígidas e sólidas do passado não fazem mais sentido num mundo liquido e volátil. As perguntas a serem respondidas são diferentes das que se faziam anteriormente, logo, não se produzem respostas para o passado mas para o agora e então.

A vida na modernidade liquida, portanto, se percebe fluida. A velocidade de informação disponível trazida a todos os cantos pela internet e o acesso a informação cada vez maior a um maior número de pessoas proporcionaram excessos informacionais que requerem um continuado processo de atualização e revisão de conteúdos com novas informações que, constantemente, atualizam os conhecimentos a partir de novas perspectivas. Segundo Bauman, uma das características fundamentais deste tempo é capacidade de aprender e descartar o que se aprendeu selecionando o que deve seguir no processo de conhecimento e atualização do que se conheceu. Para ele, “aprender depressa, é a capacidade de esquecer instantaneamente o que foi aprendido antes”. (Bauman, 2013). Portanto, pode-se depreender das palavras dele que o descarte de informações se faz necessário diante da quantidade, da velocidade e das novas perspectivas informacionais. Assim, afirma ele: "mudar de ideia ou revogar decisões anteriores é algo que deve ocorrer no processo sem remorsos nem reconsiderações”. (Bauman, 2013)

Entretanto, sabe-se que, mesmo diante da liquidez social em que a contemporaneidade vive, o único propósito invariável da educação era, é e continuará a ser a preparação dos educandos para a vida segundo as realidades que invariavelmente enfrentarão no decorrer da caminhada. Portanto, o ensino, neste sentido, precisa ser de conhecimento prático, concreto e imediatamente aplicável, de tal maneira que seja provocativo devendo produzir no educando uma mentalidade crítica, aberta as novas concepções que se forem forjando através dos novos tempos e que se fizerem necessárias no decorrer da caminha educacional. Ademais, o que se espera e se requer de um educador num contexto como este é que ele seja um contínuo aprendiz, capaz de atualizar-se sempre para que possa obter os melhores resultados acadêmicos nas vidas de seus alunos. Ainda que, em sua carreira profissional, tenha que lidar com as questões implícitas advindas do sistema de capital.

 

1.2.1   A necessidade de atualização constante dos professores e os desafios enfrentados na era da Modernidade Liquida.

 

Quanto ao processo de graduação no mundo liquido, percebe-se nitidamente a necessidade de uma formação continuada, tendo em vista que cada vez mais as quantidades de informação disponível sobre determinados assuntos se multiplicam e os saberes docentes exigem um processo contínuo de adequação e desenvolvimento pessoal por parte do educador.

[...] o saber dos professores não é um conjunto de conteúdos cognitivos definidos de uma vez por todas, mas um processo em construção ao longo de uma carreira profissional na qual o professor aprende progressivamente a dominar seu ambiente de trabalho, ao mesmo tempo em que se insere nele e o interioriza por meio de regras de ação que se tornam parte integrante de sua ‘consciência prática’. (Tardif, 2012, p. 14).

Logo, já não se pode achar ou mesmo esperar que o simples fato de adquirir uma formação acadêmica de nível superior seja suficiente, pois diante de um mundo cada vez mais diversificado é essencial ter-se múltiplas formações a fim de que, por meio destas novas competências adquiridas, se possa sobreviver e desenvolver no mercado de trabalho cada vez mais competitivo, conectado e volátil, sujeito à múltiplas mudanças e ao humor do mercado financeiro. Sobre este ponto, o professor John Kotter, da Harvard Business School, citado por Bauman, advertiu aos seus leitores dizendo que "os conceitos empresariais, produtos, projetos, inteligência rival, meios de produção e todos os tipos de conhecimento têm períodos de vida útil mais curtos". (Bauman, 2013). No entanto, sabe-se que a formação continuada de professores é um processo de aprendizagem e aprimoramento profissional ao longo da carreira docente. Essa formação envolve a atualização de conhecimentos, habilidades e competências, visando melhorar a prática pedagógica e acompanhar as demandas e transformações educacionais no seio da sociedade.

A contemporaneidade, ou seja, a cultura emergente intitulada de modernidade liquida, é repleta de transformações. Mudanças constantes que afetam todas as esferas da vida. De fato, é impressionante a quantidade de transformações ocorridas na sociedade nestes últimos anos. Isso pode ser verificado facilmente por meio dos avanços tecnológicos. Portanto, na contemporaneidade referida, o papel do professor é supervisionar o conhecimento do educando e orientar os acessos, não mais como um detentor exclusivo do conhecimento, mas como um intermediador, instrumentalizador, no qual o educando pode se espelhar como referência e adquirir estimulo na seleção de múltiplos conhecimentos. O escritor Rubem Alves, propôs em entrevista uma teoria para explicar o papel do professor dizendo que “ele não ensina nada”, pois o conhecimento está totalmente disponível nos livros, na internet, nos vídeos. Segundo ele, o real papel do professor, seria “estimular o gosto do aluno pelos estudos”. É a teoria do espanto, na qual o aluno sente-se entusiasmadamente curioso em aprender através de processos de descobertas guiadas, supervisionadas e estimuladas pelo professor, o qual teria como papel principal aguçar a curiosidade do aluno. (ALVES, 2012). A proposta de Alves era da educação dos sentidos. Ele tentava equacionar as questões existenciais e políticas vinculadas ao processo educacional, seguindo seu próprio caminho a partir do pensamento crítico de Paulo Freire e Demerval Saviani.

Bauman, por sua vez, propõe que a aprendizagem nos dias atuas poderia ser comparada metaforicamente a misseis inteligentes os quais seriam preparados para aprender durante o percurso até encontrar o alvo, o qual não é mais fixo, pois está em constante movimento. Compreende-se que, diferentemente dos mísseis balísticos, que foram muito bem-sucedidos noutro tempo, os mísseis inteligentes são bem mais adequados aos dias atuais diante das demandas militares cada vez mais sofisticadas e alvos não mais estáticos. Isto serve como modelo para compreensão do significado da aprendizagem na modernidade liquida. A aprendizagem, portanto, deve ser um processo contínuo em que educadores e educandos o tempo todo adquirem novos conteúdos que precisarão aprender, reaprender, descartar e desconsiderar, rumo a novas e surpreendentes descobertas. Ademais, para Saviani,

A compreensão desse saber relaciona-se ao entendimento de condições sócio históricas que determinam a tarefa educativa. De acordo com essa concepção, o docente precisa apreender que, por meio da Educação, os alunos serão integrados à vida na sociedade a que pertencem, e essa inserção representa o papel ativo de cidadão. Portanto, o docente necessita ter a compreensão da dinâmica da sociedade, as transformações que nela acontecem e suas características. (SAVIANI, D., 1996)

Percebe-se, no entanto que, nestes tempos líquidos, o próprio processo educacional não mais é algo sólido e estático, mas algo moldável no qual a rigidez passada não encontra mais sucesso como na cultura anterior que a precedeu. Deste modo, percebeu-se que a aprendizagem na modernidade liquida, ocorre num contexto em que prevalece, segundo Bauman, a civilização do excesso, da redundância, do dejeto e do seu descarte. ” (Bauman, 2013). Logo, a educação ao longo da vida, deve ser continuada, em virtude do fato que a massa de conhecimentos disponíveis sobre determinados assuntos duplica-se a cada 5 anos. Por essa razão, o professor que para de crescer hoje, invariavelmente será descartável amanhã.

Ademais, há muitas dificuldades educacionais neste mundo líquido. E com isso, nota-se claramente, que a velocidade de informação tecnológica tem produzido cada vez mais a criação de cursos de rápida duração e isto produz como resultado uma baixa qualidade no nível acadêmico das formações na intenção de formar rapidamente novos educadores que acabam sendo produzidos com baixa qualidade profissional. Este fato leva a uma contradição, pois sabe-se que educação e imediatismo são termos contraditórios entre si, e, de fato, não há como aprofundar-se conhecimentos sem, contudo, gastar-se tempo considerável, disciplinado e diligente nesta empreitada. Este é um dos graves problemas da educação nestes tempos de imediatismo. Deseja-se os resultados, sem, contudo, gastar-se tempo com qualidade e diligência na produção deles. A sociedade vive a cultura do imediatismo e isto tem sido prejudicial para a educação, desde que não se pode conseguir as duas coisas ao mesmo tempo.

O propósito da educação, no entanto, é preparar os educandos para a vida segundo as realidades que eles terão que enfrentar no caminho e isso de acordo com as suas preferências com o apoio supervisionado do educador. Logo, o educador tem um papel social preponderante no processo educacional. Na verdade, ele tem um papel revolucionário, pois ele deve ser capaz de produzir sobre a vida do educando, o encaixe perfeito nas muitas partes do processo de ensino aprendizagem. Neste sentido, deve-se observar com cuidado os critérios de criação de cursos para não se correr o risco de produzi-los apenas com cunho comercial, ou seja, com a finalidade última de se obter lucro, afetando a qualidade do ensino e deixando como legado um resultado deficitário na aprendizagem do aluno que seja prejudicial no processo educacional como um todo.

 

1.2.2   Novas abordagens e ferramentas na formação continuada de professores.

 

A modernidade líquida trouxe mudanças significativas na sociedade, como a rápida difusão do conhecimento e a informatização de diversos setores. Isso afetou diretamente a forma como os professores adquirem e compartilham conhecimento. Deste modo, o advento da internet trouxe consigo uma série de oportunidades e desafios os quais, demandam necessariamente, o seu uso com bom senso, para assim poder vir a fazer toda diferença no processo educacional. A utilização das tecnologias com bom senso, significa dizer que, o educador, por vezes, terá que considerar que o uso excessivo da tecnologia poderá trazer um enfraquecimento da aprendizagem no sentido que o aluno pode vir a utilizar do recurso tecnológico em lugar de realizar tarefas simples do cotidiano educacional, ou seja, a leitura de uma dada informação para a compreensão e absorção do sentido, além de, é claro, com isso, ter uma perda substancial da capacidade de reflexão e mentalidade crítica sobre um determinado assunto em disciplinas que se requer maior capacidade de análise e reflexão críticas. No entanto, o que se pode observar facilmente em classes nos níveis básicos da educação brasileira, é uma considerável perda por parte dos alunos da capacidade de ler, escrever e interpretar o sentido de textos simples. Observa-se, principalmente nos círculos particulares da educação básica, uma grande quantidade de uso de recursos tecnológicos, muitas vezes exigidos por parte dos alunos, ao mesmo tempo em que se verifica uma considerável perda de profundidade acadêmica. O docente, portanto, deve compreender com isso que, seu papel na educação, é e continuará sendo, preparar os jovens para a vida segundo as realidades que tenderão a enfrentar. Retomamos o pensamento de Bauman, considerando que, para tanto, eles precisão de conhecimento prático, concreto e imediatamente aplicável. ” (BAUMAN, 2013). O uso de novas tecnologias, no entanto, não foge a esta regra e deve produzir cidadãos capazes de refletir com uma mentalidade crítica acerca das questões fundamentais a sua volta para o exercício pleno da cidadania.

Não resta dúvida que a utilização de recursos tecnológicos e as novas formas de comunicação social podem ser utilizadas de maneira a poderem contribuir com o processo educacional. Entretanto, dever-se evitar os excessos e o mau uso destes recursos. As redes sociais, por exemplo, proporcionam espaços interessantíssimos de compartilhamento de ideias e recursos entre os professores, permitindo a troca de experiências e o acesso a conteúdos relevantes. Entretanto, o seu mau uso pode interferir drasticamente no desenvolvimento acadêmico.

Na era líquida, a atualização constante é essencial e se faz necessária para os professores, pois o conhecimento nesta nova era se torna obsoleto rapidamente. Os profissionais da educação precisam se manter atualizados para atender às demandas de um mundo em constante mudança. Plataformas de ensino online oferecem oportunidades de aprendizagem flexíveis e acessíveis, permitindo que os professores se atualizem em seu próprio ritmo. O fato concreto é que as oportunidades são interessantíssimas e os professores deve aproveitar e consolidar o ensino-aprendizagem de tal forma que os resultados sejam verificáveis.

Os professores, no entanto, enfrentam desafios adicionais nesta era líquida, dentre os quais pode-se destacar a questão de como lidar com a sobrecarga de informações existentes e disponíveis para uso imediato em suas aulas. Esta é uma questão relevante que demandará do professor sabedoria para escolher dentre as tantas informações, aquelas as quais ele deve mencionar, as que deve de fato ensinar e as que apenas precisa omitir. Assim, o triangulo mencionar, ensinar, omitir, deve ser uma tônica comum no trabalho docente destes templos “fluidos”. Outro problema considerável nestes dias de superfluidez é a questão de como enfrentar a resistência à mudanças, visivelmente encontradas nos círculos acadêmicos, diante do fato que em momentos transicionais a resistência as mudanças causam uma série de problemas que colocam o professor diante de dificuldades muitas vezes insolúveis momentaneamente, as quais consomem muita energia e tempo do trabalho docente, levando o professor a ter que recuar diante de demandas reprimidas ou incompreendidas. E, por fim, uma questão por vezes fundamental e altamente relevante no dia a dia da sala de aula para a tarefa docente que é a questão de como encontrar maneiras eficazes de integrar as novas tecnologias em sala de aula. Isto, tendo em vista o fato da complexidade da sala de aula com as suas múltiplas variantes educacionais oriundas não só das dificuldades impostas pela aprendizagem, mas surgidas do contexto social pós-pandêmico da covid 19.

 

CONCLUSÃO

 

A modernidade líquida é um conceito criado pelo sociólogo Zygmunt Bauman para descrever a sociedade contemporânea, caracterizada pela fluidez e instabilidade. Nessa era líquida, as relações e estruturas sociais são voláteis, o conhecimento é mutável e as ideias são efêmeras. Logo, o professor precisará se adequar aos novos tempos para que possa realizar um tipo de trabalho que seja bem-sucedido.

Ademais, a modernidade líquida traz desafios únicos para a formação continuada de professores. No entanto, também abre oportunidades para o desenvolvimento de abordagens inovadoras e o uso de tecnologias educacionais. Adaptar-se a esse contexto fluido é fundamental para garantir uma educação de qualidade e preparar os alunos para um futuro em constante transformação.

Além disso, compreender e se adaptar à modernidade líquida na formação continuada de professores é essencial para manter a relevância e a qualidade do ensino. Os professores que abraçam as mudanças e utilizam as novas abordagens e ferramentas têm mais chances de preparar os alunos para os desafios do século XXI.

Nestes tempos líquidos, todos os tipos de conhecimento têm períodos de vida útil mais curtos, logo, tona-se necessária uma revisão constante dos materiais e das formações docentes para a obtenção de novas perspectivas que lancem luz para a solução dos novos problemas que surgem na mesma velocidade que outros desaparecem por entrarem em desuso e se tornarem desnecessários. Sobre isto, Bauman afirmou Educação e Juventude:

 

Um espectro paira sobre os cidadãos do mundo líquido-moderno e todos os seus esforços e criações: o espectro da superfluidez. A modernidade líquida é uma civilização do excesso, da redundância, do dejeto e do seu descarte. (BAUMAN, 2013)

 

Assim se conclui que num mundo liquido como este somos todos compelidos a assumir a vida pouco a pouco, tal como ela nos vem, esperando que cada fragmento seja diferente dos anteriores, exigindo novos conhecimentos, perspectivas e habilidades que devem ser utilizadas ou descartadas à medida que se tornem necessárias ou desnecessárias.

 

 

 

 

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

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[1] Almir de Souza Cruz é licenciado em História e Bacharel em Direito. Pós-graduado em História da Igreja e da Teologia. Pós-graduando em Ciências Humanas e Mestrando em Educação, Cultura e Subjetividade. Além de possuir bacharelado em Teologia Livre e MASTER MINISTRY em Teologia Livre.

14 de outubro de 2023

A épica de Gilgamesh

http://www.kplus.com.br/materia.asp?co=5&rv=Literatura

 

A realização de uma obra de arte, perdurável através dos séculos, é um dos mais notáveis "milagres" feitos pelo homem. É a realização intelectual e artística cuja verdadeira origem permanecerá largamente incompreendida.

Há nove mil anos, um sumério inventava a escrita e inaugurava a Era Histórica. É interessante salientar as notáveis conquistas intelectuais e materiais desse povo, inventor da escrita, fundador da civilização, iniciador da tradição intelectual do Oriente e do Ocidente, e berço das artes, das letras e das ciências.

A Literatura Suméria, a mais antiga conhecida pela humanidade, é paradoxalmente a que mais demorou a ser conhecida pelo homem moderno. Seu estudo foi iniciado após a descoberta da escrita e do povo sumério em meados do século passado. Está documentada em milhares de tabuletas de argila escavadas nas cidades mesopotâmicas. A maior parte desta literatura era formada de poemas de mitos e lendas, cantares épicos, documentos historiográficos, ensaios curtos e longos, dizeres e provérbios, assim como hinos e lamentações provavelmente usados nos cultos religiosos.

 

Cantar de Gilgamesh

O Cantar de Gilgamesh, considerada a obra-prima da literatura suméria, é um canto épico que narra as façanhas do Rei-herói, Gilgamesh, da antiga cidade de Uruk, na Mesopotâmia. O tema central vai além da narração de viagens, lutas e aventuras, temores e sonhos do protagonista: canta-se à amizade, ao amor, aos sentimentos de vingança, fala-se de opressão, de arrependimento e, acima de tudo, do temor à desaparição final e ao esquecimento após a morte. Este último é que leva Gilgamesh a uma procura insólita, desesperada e falida, mas não inútil, pela sua transcendência, da imortalidade.

Gilgamesh, talvez, o primeiro personagem histórico, viveu em torno do ano 2700 a.C., reinou em Uruk (a Erech bíblica) e construiu suas muralhas. Na lendária relação dos reis sumérios, ele é o sexto rei após o Dilúvio.

A obra em si parece, às vezes, obscura, principalmente por ser conhecida de forma incompleta. A mais antiga versão existente do Cantar foi escrita em sumério, por volta do ano 2000 a.C., sendo cópia de trabalho muito mais antigo. No próprio Cantar consta que, após retornar de suas viagens, o próprio Gilgamesh o escreveu, numa estela de pedra que colocou na base das muralhas de Uruk. Teria, desta forma, sido escrito poucos séculos (quatro a seis?) após a invenção da escrita.

Ponto de partida da literatura universal, a obra surge tão evoluída que, ainda hoje, mesmo separados pela barreira de 47 séculos, pela diferença de sensibilidade e pela nossa cultura moderna, configura-se uma leitura apaixonante, ainda que pouco conhecida fora dos círculos acadêmicos.

Ela nos toca não apenas pela sua beleza, mas também pela sua criatividade temática e técnica; os efeitos e técnicas poéticas que utiliza são invenções da literatura suméria, que a civilização atual continua usando, aperfeiçoados nos quatro a cinco milênios transcorridos:


O uso da métrica e da rima era desconhecido, mas praticamente todos os demais artifícios e técnicas poéticas foram usados com habilidade, imaginação e efeito: repetição e paralelismo, metáfora e símil, coro e refrão. Na narrativa poética suméria, contos épicos e míticos, por exemplo, abundam os epítetos estáticos, longas repetições, fórmulas recorrentes, longas e demoradas descrições e longos discursos. (Kramer, Os Sumérios, sua História, Cultura e Caráter, The Univ. of Chicago Press, 1963).

Esta e outras obras sumérias foram amplamente disseminadas, conhecidas e copiadas no Oriente Médio durante mais de dois milênios, recontadas e parcialmente incorporadas pelos escribas (e pelos nar ou aedas) em obras maiores. Grandes escritores usaram livremente temas sumérios, como no Gênese e no Livro de Jó, por exemplo, e também em obras muito posteriores do Ocidente, como a "Descida ao Inferno" retomada por Dante na Divina Comédia. Homero possui ampla dívida com os sumérios: temática, nas viagens de Ulisses, na descida aos infernos, e técnica, no uso de epítetos, a invocação e colaboração dos deuses e a convivência, amor e ódio, dos mesmos com os humanos e até a promessa de imortalidade àqueles a quem canta.

A existência desta obra-prima foi revelada pelo arqueólogo inglês George Smith que, em 1872, entre os restos da Biblioteca Real de Nínive, encontrou partes da descrição do Dilúvio Universal, semelhante, mas muito anterior ao do Gênese do Antigo Testamento hebraico.


O Poema começa com o Elogio a Gilgamesh:


Ó! Divino Gilgamesh, que todo o viu
Eu te farei conhecer em todas as terras.
Eu ensinarei sobre (aquele) que experimentou todas as coisas.
Anu deu-lhe a totalidade do conhecimento do Todo.
Ele viu o Segredo, penetrou o Mistério.
Ele revelou o que houve antes do Dilúvio.
Ele fez grandes viagens, até o limite de suas forças
e quando voltou em paz...
Ele gravou numa estela de pedra a narração de suas proezas
e construiu as muralhas de Uruk, nosso lar,
e as paredes do Templo de Eanna, o sagrado santuário.
[...]


E, sobre o próprio Gilgamesh, diz:

Ele cruzou o oceano, os vastos mares até o sol nascente,
Ele explorou as regiões do mundo, buscando vida.
[...]

Dois terços dele são divinos, um terço é humano.
A grande deusa Aruru fez o modelo do seu corpo,
ela preparou sua forma...
... belo, o mais bonito dos homens,
... perfeito...
Gilgamesh é o pastor de Uruk, o refúgio,
decidido, eminente, conhecedor e sábio.
[...]

Gilgamesh, o Rei de extraordinária fortaleza e beleza, exerce seu poder às vezes com sabedoria, às vezes despoticamente: oprime os homens jovens e as mulheres de Uruk, sem que ninguém possa se lhe opor. Os deuses resolvem, então, criar um homem que seja o seu similar: Enkidu, o homem primitivo, nascido e criado nos campos entre as bestas selvagens, o mais forte dos homens. A partir desse momento deve-se produzir o encontro de Gilgamesh e Enkidu, isto é, da civilização com a barbárie. Enkidu vai enfrentar Gilgamesh que já o espera prevenido pelos seus sonhos, interpretados por sua mãe, a deusa Rimat-Nimsum. Depois de uma luta de titãs prevalece Gilgamesh, sendo reconhecido por Enkidu como seu superior. Tornam-se então amigos inseparáveis, transformando o mútuo respeito em verdadeira amizade que nunca haviam experimentado antes.

Gilgamesh convence Enkidu a viajar até a Floresta dos Cedros (no Líbano atual), com o intuito de matar o Guardião dos Cedros, Humbaba, o Terrível, cortar o Cedro Sagrado e obter glória e fama eternas. Apesar da oposição dos conselheiros, os amigos partem, confiantes na proteção do Deus-Sol, Shamash. Ao chegar à Floresta dos Cedros, Enkidu lembra o formidável poder de Humbaba e tenta convencer Gilgamesh a abandonar uma luta impossível e retornar. Mas Shamash os protege e, num trecho do Cantar de difícil compreensão, enfrentam Humbaba. Este é finalmente dominado pelos amigos, após uma luta de gigantes. Enkidu, temeroso das conseqüências de um revide, se deixarem Humbaba com vida, insiste que ele deve ser morto. O monstro amaldiçoa Enkidu condenando-o a ter curta vida e Enkidu, com seus braços formidáveis e sua enorme espada, corta a cabeça de Humbaba, despertando a ira do poderoso deus Enlil. Para aplacar o deus, Enkidu corta o maior dos cedros para com ele construir a Grande Porta do Templo de Enlil, em Nippur. Após terem cortado os cedros, iniciam o retorno e, à beira do Eufrates, constroem balsas que os levam de volta a Uruk. Enquanto Enkidu governa a balsa, Gilgamesh carrega triunfalmente a cabeça cortada de Humbaba.

De volta a Uruk, a bela Ishtar, deusa do amor, propõe casamento a Gilgamesh, mas ele recusa, após lembrar os trágicos destinos dos anteriores amantes da deusa. Ishtar, desprezada, é um inimigo temível; na sua ira ela pede ao seu pai, o deus Enlil, para enviar o Touro dos Céus e destruir Gilgamesh, sua gente e sua cidade. Contra toda expectativa, os dois amigos conseguem matar a besta. Ishtar apela à justiça dos deuses que, afrontados pela morte de Humbaba e agora pela do Touro, decidem que um dos amigos deve morrer e esse será Enkidu, já amaldiçoado pelo Guardião dos Cedros.

Enkidu fica sabendo de sua morte iminente por um sonho. Na sua comovente revolta frente à injustiça, apela ao deus Shamash que, em sábia resposta, o faz lembrar que deve agradecer pelas coisas boas que viveu e pelo profundo sentimento de perda que deixará atrás de si. Enkidu adoece e, apesar do cuidado constante e devotado de Gilgamesh, que é o mais sábio, morre após doze dias. Gilgamesh, arrasado pela perda do amigo, rende-lhe honras, constrói uma estátua em sua memória, rebela-se contra o destino e percebe que alcançar a fama entre os homens pouco ou nada significa frente ao horror do decaimento físico e da morte.

Gilgamesh rebela-se contra a Morte e dedica-se a procurar o segredo da vida eterna. Para tanto, decide procurar o único homem que a conseguiu – Utnapishtim, o Longínquo – o Noé sumério, a quem, após sobreviver ao Dilúvio, os deuses concederam vida eterna.

Numa viagem cheia de perigos, Gilgamesh encontra criaturas fabulosas e estranhas que o advertem da impossibilidade de sua procura, mas, com férrea vontade, continua e acha o barqueiro de Utnapishtim, que o levará ao encontro deste através das Águas da Morte. Quando, finalmente, o encontra, após jornadas agonizantes, é surpreendido, pois em vez de encontrar um ser extraordinário, cujo segredo de imortalidade estava disposto a tomar pela força, encontra um homem comum. Perplexo, diz:

Estava decidido a lutar com você,
Mas agora meu braço pende inútil perante você.
Diga-me, como é que você, na Assembléia dos Deuses, achou a vida eterna?

E Utnapishtim responde:

Eu te revelarei, Gilgamesh, o que é secreto,
Dir-te-ei um segredo dos deuses!


Utnapishtim revela então o que aconteceu no Dilúvio e como ele com a sua família, parentes, amigos e animais foram salvos pela sua piedade e obediência ao deus Ea (nome sumério do deus Enki, deus das águas doces e criador do homem e da sabedoria). O deus Ea, após a terminação do Dilúvio, intercede a favor de Utnapishtim perante o poderoso deus Enlil, o guerreiro. Este, que ordenou o Dilúvio, fica irritado pela sobrevivência dos humanos e suspeita da lealdade de Ea que, argumentando eloqüentemente, convence-o de que não revelou o segredo. Enlil perdoa Utnapishtim e ainda o converte, bem como a sua mulher, em seres imortais.


Terminado o relato do Dilúvio e, frente à determinação de Gilgamesh, Utnapishtim lhe diz:

Então, quem convocará agora (a Assembléia) dos deuses para ti,
para que possas achar a vida que procuras?
Mas, já que o desejas, submete-te à prova:
deves resistir ao sono durante seis dias e sete noites.


Gilgamesh, esgotado fisicamente pela penosa viagem, cai no sono logo e dorme sete dias seguidos. Ele falha no teste, sem dúvida devido à terça parte humana de sua natureza, e deve retornar.

Antes de voltar, a esposa de Utnapishtim intercede frente a este para dar a Gilgamesh uma recompensa pelos seus esforços, dizendo:

Gilgamesh chegou aqui cansado e com as forças esgotadas. O que você lhe dará para que retorne à sua terra com honra?


E Utnapishtim, dirigindo-se a Gilgamesh, já no barco:

Eu te revelarei um segredo dos deuses, uma coisa secreta.
Embaixo da água existe uma planta,
ela tem espinhos como uma sarça,
como uma roseira ela te ferirá as mãos
Se conseguires apanhá-la, terás nas mãos a planta que rejuvenesce.

Gilgamesh mergulha no fundo do mar, colhe a planta e a segura, embora esta lhe ferisse as mãos. A planta lhe permitiria viver de novo a sua vida, com a vantagem da sabedoria adquirida na sua viagem que contém segredos dos deuses. Mas ele duvida e decide primeiro testar a planta com os velhos de Uruk e, depois, comê-la. Há aqui um curioso ponto de interrogação. Por que Gilgamesh não come a planta imediatamente? Teria desconfiado de Utnapishtim? Logo ele, que percorreu o mundo real e o fantástico para encontrá-lo?

Inicia o retorno, cruzando a porta do mundo que antes tinha franqueado. Quando param para descansar, à noite perto de uma fonte de águas frescas, Gilgamesh vai tomar banho e uma serpente, sentindo a fragrância da planta, silenciosamente sai das profundezas, apodera-se dela, muda logo de pele e submerge, para desespero de Gilgamesh que, impotente, a vê desaparecer nas profundezas.


Então Gilgamesh sentou-se e chorou,
Grossas lágrimas correram-lhe pelo rosto.
[...]

Encontrei o sinal da vida e agora o perdi.


A esperança acabou. Gilgamesh retorna ao lar, mais velho e de mãos vazias, tendo agora entendido que não existe a chance de uma segunda vida real e muito menos a de imortalidade.

No fim da viagem, já nas muralhas de Uruk, Gilgamesh, com voz estremecida, mostra a muralha a Ur-shanabi, o barqueiro.

Repete-se o início do Cantar, só que agora as palavras são ditas pelo próprio Gilgamesh. Desta vez trata-se realmente de um solilóquio: perdida a esperança da vida eterna, Gilgamesh relembra e faz uma retrospectiva de sua vida. Ur-shanabi é apenas um símbolo do povo, cuja aprovação final talvez seja seu único consolo:


Ó! Divino Gilgamesh, que todo o viu.
Ele viu o Segredo, penetrou o Mistério.
Ele revelou o que houve antes do Dilúvio.
Ele fez grandes viagens, até o limite de suas forças
e quando voltou em paz...
Ele gravou num estela de pedra a narração de suas proezas.


A seguir, com uma reprise dos elogios feitos no início, termina a XI tabuleta. A maioria dos autores preferem terminar aqui o relato. Contudo, na XII tabuleta encontram-se dois episódios importantes "A descida ao Inferno" e "A Morte de Gilgamesh", os mais antigos junto com a aventura da "Floresta dos Cedros". A "Morte de Gilgamesh" parece ser a repetição de fórmulas rituais fúnebres, possuindo então alto valor arqueológico. "A descida ao Inferno" pode ser uma variante do sonho de Enkidu, prevendo a sua morte.

 

A descida ao Inferno

O episódio começa de forma desconexa, com imagens e visões que pareceriam extraídas de um sonho. Depois de uma sucessão de imagens, quase incompreensíveis para a nossa sensibilidade moderna, temos:


A flauta e a harpa caíram na Grande Mansão (o inferno)
Gilgamesh enfiou nela sua mão, mas não pôde alcançá-las.
Enfiou o pé, mas não pôde alcançá-las.
Então Gilgamesh sentou-se frente ao palácio dos deuses do mundo subterrâneo,
derramou lágrimas e ficou com o rosto pálido.
Ó minha flauta, ó minha harpa!
Minha flauta cujo poder era irresistível!
Minha flauta, minha harpa, quem as trará dos infernos?

Enkidu se prontifica a ir aos infernos procurá-las. Gilgamesh dá-lhe então conselhos para facilitar o seu retorno, como o de não usar ungüentos perfumados, nem vestir roupas limpas, nem deixar o seu arco na terra etc., para que os espíritos não o prendam. Mas, confiando nas suas forças, Enkidu faz tudo errado, e a terra "o pega":


O destino não o possuiu, nenhum espectro o possuiu, a terra o possuiu,
Não caiu sobre o campo de batalha, a terra o possuiu.

Gilgamesh tenta de todas as formas conseguir, através dos deuses, a libertação de Enkidu. Mas Enlil nem o escuta. Finalmente o deus Ea, criador e protetor dos homens, comanda ao deus dos infernos, Nergal:


Abre o fosso que comunica com os infernos,
Que o espírito de Enkidu volte dos infernos
e possa falar com seu irmão!

Aberto o fosso por Nergal:


O espírito de Enkidu, como um sopro, saiu dos infernos
E Gilgamesh e Enkidu falaram:
- Ó meu amigo, meu caro Enkidu,
diga-me a lei do mundo subterrâneo, você a conhece.
- Não, não te direi a lei que conheço.
Não te direi a lei para que não te sentes a chorar!
- Seja assim. Quero sentar-me e chorar!

Então, seguem-se as revelações que Gilgamesh mais teme:


Aqueles que quiseste, os que eram gratos a teu coração,
todos os que acariciaste,
estão agora roídos pelos vermes,
estão cobertos de pó.
Seus espíritos não têm descanso nos infernos.

Os detalhes deveriam ser muito atemorizadores para o espírito sumério da época e nos lembram passagens do "Inferno" da Divina Comédia de Dante.

Não há retorno real de Enkidu, que, vítima de sua fidelidade e por não ter respeitado a sabedoria dos conselhos de Gilgamesh, que representa o Saber e a Ciência, deverá ficar para sempre nos infernos.

 

Morte de Gilgamesh

O destino de Gilgamesh, decretado pelo pai dos deuses, Enlil, está cumprido:
Na Terra inferior, na casa das trevas, uma luz o iluminará,
Nenhum homem famoso uma lembrança como a dele deixará,
As gerações futuras não terão uma lembrança que se compare à dele.
[...] sem Gilgamesh não haverá luz.
Ó Gilgamesh, foi-te dada a realeza segundo o teu destino.
A vida eterna não era teu destino.

Humildes e poderosos da cidade choram a morte de seu herói e protetor. Esposa e filho, concubinas, músicos, bufos, todos os que comeram de sua mesa, servos, mordomos e os que viveram no seu palácio pesam as suas oferendas para Gilgamesh e para Ereshkigal, a Rainha da Morte e para os deuses dos mortos.


O destino falou. Qual um peixe preso no anzol,
Gilgamesh está deitado em seu leito,
Como gazela presa no laço
[... ]


Gilgamesh, filho de Ninsun, está em seu túmulo
No altar das oferendas ele pesou o pão,
No altar das libações ele verteu o vinho.
Nesses dias partiu Gilgamesh, filho de Ninsun
o rei, nosso senhor, sem igual entre os homens,
Aquele que não faltou a Enlil, seu deus.
Ó Gilgamesh, senhor de Kullab, grande é a tua glória!

 

Termina assim a Épica mais antiga da humanidade. Não só com a morte física do herói, mas com o seu fracasso na procura pela vida eterna.

Gilgamesh morre junto com os seus sonhos, mostrando assim que é humano. A partir dessa verificação, só lhe resta voltar à sua amada Uruk, para deixar a marca perene de sua existência.

Morta a esperança, Gilgamesh alenta nas suas façanhas, e por isso é que faz sua retrospectiva vital ao barqueiro Ur-shanabi, único a testemunhar sua luta impossível contra o destino efêmero dos humanos.

Por isso é que escreve na pedra o que viveu na vida:


Ó Gilgamesh, foi-te dada a realeza segundo o teu destino.
A vida eterna não era teu destino.
Quando os deuses criaram o homem
deram-lhe como atributo a Morte,
mas a Vida, a Vida Eterna, essa, só ficou para eles.

Este poderia ser o epitáfio na lápide de Gilgamesh, a gigantesca figura que, através dos séculos, marca a despedida definitiva da Humanidade da escuridão impenetrável da Pré-História, que ainda se entrevê nos detalhes do relato do sábio Utnapishtim do mundo antes do Dilúvio Sumério.

Gilgamesh não atinge a imortalidade fútil dos deuses sempiternos que, na sua imobilidade, mais semelham a morte do que a vida. Ele atinge a imortalidade dos arquétipos humanos na memória dos seus iguais, os homens. Obras materiais, como a muralha de Uruk, persistem após 47 séculos de história de uma das regiões mais conturbadas do mundo. Mas ele perdura pela sua constante procura da essência da eternidade, pela consciência insigne de seu conhecimento, pelo que gravou na pedra e impregnou na mente das gerações que o seguiram, cumprindo assim as proféticas linhas finais do poema.

Ele perdura porque a história de sua ciência, de sua força de vontade e de sua coragem nos foram transmitidas – talvez por ele mesmo – e porque elas encarnam o ideal humano de uma vida onde cada obstáculo dá origem a um novo esforço que o leva à contínua superação.

Como Modelo Literário, o Cantar teve as maiores conseqüências imagináveis. Conhecido de toda a antigüidade, ele foi imitado e inspirou obras-primas que conhecemos muito antes, como o Gênese do Velho Testamento hebraico e a Odisséia.

O Cantar, conhecido até poucos séculos depois de Cristo, perde-se com a decadência e desaparecimento da Babilônia. Ele é reencontrado nas escavações feitas por volta de 1860, por arqueólogos ingleses em Nippur e alemães em Uruk (atual Warka) e depois na própria Babilônia. Assistimos, aos poucos, ao renascimento de Gilgamesh... E, talvez, essa seja a chance que a história, reencarnando a "planta do rejuvenescimento" de Utnapishtim, dá a Gilgamesh: viver sua segunda vida na memória e na imaginação do homem moderno.

Ele conquistou a imortalidade da espécie, devido à terça parte humana de sua constituição, a mesma que, paradoxalmente, lhe impediu de atingir o eterno absoluto dos deuses.

Mas, não é isso mesmo o que o poeta lhe promete no início do Cantar?

Mas, eterno é o poeta ou a personagem?

Poeta e personagem identificam-se e, enquanto nos contemplam, com a perspectiva de 47 séculos e a condescendência que dá a longa intimidade com o transcurso milenar do tempo, cada um eterniza-se no outro e na mente e na imaginação dos demais homens.

 

O autor:

 O autor nasceu numa pequena cidade, Melo, no Uruguai. Estudou na "Universidad de la República" em Montevidéu onde graduou-se em Engenharia Elétrica e Mecânica. Com uma bolsa do British Council e outra da UNESCO, estudou na Glasgow University e no Cavendish Laboratory da Cambridge University.

No Brasil, em 1968, torna-se  Chefe de Pesquisas do Instituto de Energia Atômica em São Paulo e Professor de cursos de Pós-Graduação na Universidade de São Paulo e, em 1971, Professor Titular de Física do Instituto de Física. Publicou pouco mais de 200 trabalhos originais em revistas internacionais, orientou 25 doutores e mestres em Física. Apresentou suas pesquisas em Congressos e em seminários em universidades da Europa, América do Sul e do Norte e na Ásia.

Aposentou-se em 1991 mas continua publicando trabalhos de pesquisa.  Professor Honorífico da Universidade Autônoma de Madrid (1976), Acadêmico da Academia Campineira de Letras e Artes, membro de várias academias científicas.