A épica de Gilgamesh
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A realização de uma obra de
arte, perdurável através dos séculos, é um dos mais notáveis
"milagres" feitos pelo homem. É
a realização intelectual e artística cuja verdadeira origem permanecerá
largamente incompreendida.
Há nove
mil anos, um sumério inventava a escrita e inaugurava a Era Histórica. É interessante salientar as notáveis
conquistas intelectuais e materiais desse povo, inventor da escrita, fundador
da civilização, iniciador da tradição intelectual do Oriente e do Ocidente, e
berço das artes, das letras e das ciências.
A
Literatura Suméria, a mais antiga conhecida pela humanidade, é paradoxalmente a
que mais demorou a ser conhecida pelo homem moderno. Seu estudo foi iniciado
após a descoberta da escrita e do povo sumério em meados do século passado.
Está documentada em milhares de tabuletas de argila escavadas nas cidades mesopotâmicas.
A maior parte desta literatura era formada de poemas de mitos e lendas,
cantares épicos, documentos historiográficos, ensaios curtos e longos, dizeres
e provérbios, assim como hinos e lamentações provavelmente usados nos cultos
religiosos.
Cantar de Gilgamesh
O Cantar de Gilgamesh, considerada a obra-prima da literatura
suméria, é um canto épico que narra
as façanhas do Rei-herói, Gilgamesh, da antiga cidade de Uruk, na Mesopotâmia.
O tema central vai além da narração de
viagens, lutas e aventuras, temores e sonhos do protagonista: canta-se à amizade, ao amor, aos sentimentos
de vingança, fala-se de opressão, de arrependimento e, acima de tudo, do temor
à desaparição final e ao esquecimento após a morte. Este último é que leva
Gilgamesh a uma procura insólita, desesperada e falida, mas não inútil, pela
sua transcendência, da imortalidade.
Gilgamesh,
talvez, o primeiro personagem histórico,
viveu em torno do ano
A obra em si parece, às vezes, obscura, principalmente por ser conhecida
de forma incompleta. A mais
antiga versão existente do Cantar
foi escrita em sumério, por volta do ano
Ponto de partida da literatura
universal, a obra surge tão evoluída que, ainda hoje, mesmo separados pela
barreira de 47 séculos, pela diferença de sensibilidade e pela nossa cultura
moderna, configura-se uma leitura
apaixonante, ainda que pouco conhecida fora dos círculos acadêmicos.
Ela nos
toca não apenas pela sua beleza, mas também pela sua criatividade temática e
técnica; os efeitos e técnicas poéticas que utiliza são invenções da literatura
suméria, que a civilização atual continua usando, aperfeiçoados nos quatro a
cinco milênios transcorridos:
O uso da métrica e da rima era
desconhecido, mas praticamente todos os demais artifícios e técnicas poéticas
foram usados com habilidade, imaginação e efeito: repetição e paralelismo,
metáfora e símil, coro e refrão. Na narrativa poética suméria, contos épicos e
míticos, por exemplo, abundam os epítetos estáticos, longas repetições,
fórmulas recorrentes, longas e demoradas descrições e longos discursos.
(Kramer, Os Sumérios, sua História, Cultura e Caráter, The Univ. of Chicago
Press, 1963).
Esta e outras obras sumérias
foram amplamente disseminadas, conhecidas e copiadas no Oriente Médio durante
mais de dois milênios, recontadas e parcialmente incorporadas pelos escribas (e
pelos nar ou aedas) em obras maiores. Grandes escritores usaram
livremente temas sumérios, como no Gênese
e no Livro de Jó,
por exemplo, e também em obras muito posteriores do Ocidente, como a
"Descida ao Inferno" retomada por Dante na Divina Comédia. Homero
possui ampla dívida com os sumérios: temática, nas viagens de Ulisses, na
descida aos infernos, e técnica, no uso de epítetos, a invocação e colaboração
dos deuses e a convivência, amor e ódio, dos mesmos com os humanos e até a
promessa de imortalidade àqueles a quem canta.
A existência desta obra-prima foi revelada pelo arqueólogo inglês
George Smith que, em 1872, entre os restos da Biblioteca Real de Nínive,
encontrou partes da descrição do Dilúvio Universal, semelhante, mas muito
anterior ao do Gênese do Antigo Testamento hebraico.
O Poema começa com o Elogio
a Gilgamesh:
Ó! Divino Gilgamesh, que todo o viu
Eu te farei conhecer em todas as terras.
Eu ensinarei sobre (aquele) que experimentou todas as coisas.
Anu deu-lhe a totalidade do conhecimento do Todo.
Ele viu o Segredo, penetrou o Mistério.
Ele revelou o que houve antes do Dilúvio.
Ele fez grandes viagens, até o limite de suas forças
e quando voltou em paz...
Ele gravou numa estela de pedra a narração de suas proezas
e construiu as muralhas de Uruk, nosso lar,
e as paredes do Templo de Eanna, o sagrado santuário.
[...]
E, sobre o próprio Gilgamesh, diz:
Ele cruzou o oceano, os vastos mares até o sol nascente,
Ele explorou as regiões do mundo, buscando vida.
[...]
Dois terços dele são divinos, um terço é humano.
A grande deusa Aruru fez o modelo do seu corpo,
ela preparou sua forma...
... belo, o mais bonito dos homens,
... perfeito...
Gilgamesh é o pastor de Uruk, o refúgio,
decidido, eminente, conhecedor e sábio.
[...]
Gilgamesh, o Rei de
extraordinária fortaleza e beleza, exerce seu poder às vezes com sabedoria, às
vezes despoticamente: oprime os homens jovens e as mulheres de Uruk, sem que
ninguém possa se lhe opor. Os deuses resolvem, então, criar um homem que seja o
seu similar: Enkidu, o homem primitivo, nascido e criado nos campos entre as
bestas selvagens, o mais forte dos homens. A partir desse momento deve-se
produzir o encontro de Gilgamesh e Enkidu, isto é, da civilização com a
barbárie. Enkidu vai enfrentar Gilgamesh que já o espera prevenido pelos seus
sonhos, interpretados por sua mãe, a deusa Rimat-Nimsum. Depois de uma luta de
titãs prevalece Gilgamesh, sendo reconhecido por Enkidu como seu superior.
Tornam-se então amigos inseparáveis, transformando o mútuo respeito em verdadeira
amizade que nunca haviam experimentado antes.
Gilgamesh convence Enkidu a
viajar até a Floresta dos Cedros (no Líbano atual), com o intuito de matar o
Guardião dos Cedros, Humbaba, o Terrível, cortar o Cedro Sagrado e obter glória
e fama eternas. Apesar da oposição dos conselheiros, os amigos partem,
confiantes na proteção do Deus-Sol, Shamash. Ao chegar à Floresta dos Cedros,
Enkidu lembra o formidável poder de Humbaba e tenta convencer Gilgamesh a
abandonar uma luta impossível e retornar. Mas Shamash os protege e, num trecho
do Cantar de
difícil compreensão, enfrentam Humbaba. Este é finalmente dominado pelos
amigos, após uma luta de gigantes. Enkidu, temeroso das conseqüências de um
revide, se deixarem Humbaba com vida, insiste que ele deve ser morto. O monstro
amaldiçoa Enkidu condenando-o a ter curta vida e Enkidu, com seus braços
formidáveis e sua enorme espada, corta a cabeça de Humbaba, despertando a ira
do poderoso deus Enlil. Para aplacar o deus, Enkidu corta o maior dos cedros
para com ele construir a Grande Porta do Templo de Enlil,
De volta a Uruk, a bela Ishtar,
deusa do amor, propõe casamento a Gilgamesh, mas ele recusa, após lembrar os
trágicos destinos dos anteriores amantes da deusa. Ishtar, desprezada, é um
inimigo temível; na sua ira ela pede ao seu pai, o deus Enlil, para enviar o
Touro dos Céus e destruir Gilgamesh, sua gente e sua cidade. Contra toda
expectativa, os dois amigos conseguem matar a besta. Ishtar apela à justiça dos
deuses que, afrontados pela morte de Humbaba e agora pela do Touro, decidem que
um dos amigos deve morrer e esse será Enkidu, já amaldiçoado pelo Guardião dos
Cedros.
Enkidu fica sabendo de sua
morte iminente por um sonho. Na sua comovente revolta frente à injustiça, apela
ao deus Shamash que, em sábia resposta, o faz lembrar que deve agradecer pelas
coisas boas que viveu e pelo profundo sentimento de perda que deixará atrás de
si. Enkidu adoece e, apesar do cuidado constante e devotado de Gilgamesh, que é
o mais sábio, morre após doze dias. Gilgamesh, arrasado pela perda do amigo,
rende-lhe honras, constrói uma estátua em sua memória, rebela-se contra o
destino e percebe que alcançar a fama entre os homens pouco ou nada significa
frente ao horror do decaimento físico e da morte.
Gilgamesh rebela-se contra a
Morte e dedica-se a procurar o segredo da vida eterna. Para tanto, decide
procurar o único homem que a conseguiu – Utnapishtim, o Longínquo – o Noé
sumério, a quem, após sobreviver ao Dilúvio, os deuses concederam vida eterna.
Numa viagem cheia de perigos,
Gilgamesh encontra criaturas fabulosas e estranhas que o advertem da
impossibilidade de sua procura, mas, com férrea vontade, continua e acha o
barqueiro de Utnapishtim, que o levará ao encontro deste através das Águas da
Morte. Quando, finalmente, o encontra, após jornadas agonizantes, é
surpreendido, pois em vez de encontrar um ser extraordinário, cujo segredo de
imortalidade estava disposto a tomar pela força, encontra um homem comum. Perplexo,
diz:
Estava decidido a lutar com você,
Mas agora meu braço pende inútil perante você.
Diga-me, como é que você, na Assembléia dos Deuses, achou a vida eterna?
E Utnapishtim responde:
Eu te revelarei, Gilgamesh, o que é secreto,
Dir-te-ei um segredo dos deuses!
Utnapishtim revela então o que aconteceu no Dilúvio e como ele com a sua
família, parentes, amigos e animais foram salvos pela sua piedade e obediência
ao deus Ea (nome sumério do deus Enki, deus das águas doces e criador do homem
e da sabedoria). O deus Ea, após a terminação do Dilúvio, intercede a favor de
Utnapishtim perante o poderoso deus Enlil, o guerreiro. Este, que ordenou o
Dilúvio, fica irritado pela sobrevivência dos humanos e suspeita da lealdade de
Ea que, argumentando eloqüentemente, convence-o de que não revelou o segredo.
Enlil perdoa Utnapishtim e ainda o converte, bem como a sua mulher, em seres
imortais.
Terminado o relato do Dilúvio e, frente à determinação de Gilgamesh,
Utnapishtim lhe diz:
Então, quem convocará agora (a Assembléia) dos deuses para ti,
para que possas achar a vida que procuras?
Mas, já que o desejas, submete-te à prova:
deves resistir ao sono durante seis dias e sete noites.
Gilgamesh, esgotado fisicamente pela penosa viagem, cai no sono logo e dorme
sete dias seguidos. Ele falha no teste, sem dúvida devido à terça parte humana
de sua natureza, e deve retornar.
Antes de voltar, a esposa de
Utnapishtim intercede frente a este para dar a Gilgamesh uma recompensa pelos
seus esforços, dizendo:
Gilgamesh chegou aqui cansado e
com as forças esgotadas. O que você lhe dará para que retorne à sua terra com
honra?
E Utnapishtim, dirigindo-se a Gilgamesh, já no barco:
Eu te revelarei um segredo dos deuses, uma coisa secreta.
Embaixo da água existe uma planta,
ela tem espinhos como uma sarça,
como uma roseira ela te ferirá as mãos
Se conseguires apanhá-la, terás nas mãos a planta que rejuvenesce.
Gilgamesh mergulha no fundo do
mar, colhe a planta e a segura, embora esta lhe ferisse as mãos. A planta lhe
permitiria viver de novo a sua vida, com a vantagem da sabedoria adquirida na
sua viagem que contém segredos dos deuses. Mas ele duvida e decide primeiro
testar a planta com os velhos de Uruk e, depois, comê-la. Há aqui um curioso
ponto de interrogação. Por que Gilgamesh não come a planta imediatamente? Teria
desconfiado de Utnapishtim? Logo ele, que percorreu o mundo real e o fantástico
para encontrá-lo?
Inicia o retorno, cruzando a
porta do mundo que antes tinha franqueado. Quando param para descansar, à noite
perto de uma fonte de águas frescas, Gilgamesh vai tomar banho e uma serpente,
sentindo a fragrância da planta, silenciosamente sai das profundezas,
apodera-se dela, muda logo de pele e submerge, para desespero de Gilgamesh que,
impotente, a vê desaparecer nas profundezas.
Então Gilgamesh sentou-se e chorou,
Grossas lágrimas correram-lhe pelo rosto.
[...]
Encontrei o sinal da vida e agora o perdi.
A esperança acabou. Gilgamesh retorna ao lar, mais velho e de mãos vazias,
tendo agora entendido que não existe a chance de uma segunda vida real e muito
menos a de imortalidade.
No fim da viagem, já nas
muralhas de Uruk, Gilgamesh, com voz estremecida, mostra a muralha a
Ur-shanabi, o barqueiro.
Repete-se o início do Cantar, só que agora as
palavras são ditas pelo próprio Gilgamesh. Desta vez trata-se realmente de um
solilóquio: perdida a esperança da vida eterna, Gilgamesh relembra e faz uma
retrospectiva de sua vida. Ur-shanabi é apenas um símbolo do povo, cuja
aprovação final talvez seja seu único consolo:
Ó! Divino Gilgamesh, que todo o viu.
Ele viu o Segredo, penetrou o Mistério.
Ele revelou o que houve antes do Dilúvio.
Ele fez grandes viagens, até o limite de suas forças
e quando voltou em paz...
Ele gravou num estela de pedra a narração de suas proezas.
A seguir, com uma reprise dos elogios feitos no início, termina a XI tabuleta.
A maioria dos autores preferem terminar aqui o relato. Contudo, na XII tabuleta
encontram-se dois episódios importantes "A descida ao Inferno" e
"A Morte de Gilgamesh", os mais antigos junto com a aventura da
"Floresta dos Cedros". A "Morte de Gilgamesh" parece ser a
repetição de fórmulas rituais fúnebres, possuindo então alto valor
arqueológico. "A descida ao Inferno" pode ser uma variante do sonho
de Enkidu, prevendo a sua morte.
A descida ao Inferno
O episódio começa de forma
desconexa, com imagens e visões que pareceriam extraídas de um sonho. Depois de
uma sucessão de imagens, quase incompreensíveis para a nossa sensibilidade
moderna, temos:
A flauta e a harpa caíram na Grande Mansão (o inferno)
Gilgamesh enfiou nela sua mão, mas não pôde alcançá-las.
Enfiou o pé, mas não pôde alcançá-las.
Então Gilgamesh sentou-se frente ao palácio dos deuses do mundo subterrâneo,
derramou lágrimas e ficou com o rosto pálido.
Ó minha flauta, ó minha harpa!
Minha flauta cujo poder era irresistível!
Minha flauta, minha harpa, quem as trará dos infernos?
Enkidu se prontifica a ir aos
infernos procurá-las. Gilgamesh dá-lhe então conselhos para facilitar o seu
retorno, como o de não usar ungüentos perfumados, nem vestir roupas limpas, nem
deixar o seu arco na terra etc., para que os espíritos não o prendam. Mas,
confiando nas suas forças, Enkidu faz tudo errado, e a terra "o pega":
O destino não o possuiu, nenhum espectro o possuiu, a terra o
possuiu,
Não caiu sobre o campo de batalha, a terra o possuiu.
Gilgamesh tenta de todas as
formas conseguir, através dos deuses, a libertação de Enkidu. Mas Enlil nem o
escuta. Finalmente o deus Ea, criador e protetor dos homens, comanda ao deus
dos infernos, Nergal:
Abre o fosso que comunica com os infernos,
Que o espírito de Enkidu volte dos infernos
e possa falar com seu irmão!
Aberto o fosso por Nergal:
O espírito de Enkidu, como um sopro, saiu dos infernos
E Gilgamesh e Enkidu falaram:
- Ó meu amigo, meu caro Enkidu,
diga-me a lei do mundo subterrâneo, você a conhece.
- Não, não te direi a lei que conheço.
Não te direi a lei para que não te sentes a chorar!
- Seja assim. Quero sentar-me e chorar!
Então, seguem-se as revelações
que Gilgamesh mais teme:
Aqueles que quiseste, os que eram gratos a teu coração,
todos os que acariciaste,
estão agora roídos pelos vermes,
estão cobertos de pó.
Seus espíritos não têm descanso nos infernos.
Os detalhes deveriam ser muito
atemorizadores para o espírito sumério da época e nos lembram passagens do
"Inferno" da Divina
Comédia de Dante.
Não há retorno real de Enkidu,
que, vítima de sua fidelidade e por não ter respeitado a sabedoria dos
conselhos de Gilgamesh, que representa o Saber e a Ciência, deverá ficar para
sempre nos infernos.
Morte de Gilgamesh
O destino de Gilgamesh, decretado pelo pai dos deuses, Enlil,
está cumprido:
Na Terra inferior, na casa das trevas, uma luz o iluminará,
Nenhum homem famoso uma lembrança como a dele deixará,
As gerações futuras não terão uma lembrança que se compare à dele.
[...] sem Gilgamesh não haverá luz.
Ó Gilgamesh, foi-te dada a realeza segundo o teu destino.
A vida eterna não era teu destino.
Humildes e poderosos da cidade
choram a morte de seu herói e protetor. Esposa e filho, concubinas, músicos,
bufos, todos os que comeram de sua mesa, servos, mordomos e os que
viveram no seu palácio pesam as suas oferendas para Gilgamesh e para
Ereshkigal, a Rainha da Morte e para os deuses dos mortos.
O destino falou. Qual um peixe preso no anzol,
Gilgamesh está deitado em seu leito,
Como gazela presa no laço
[... ]
Gilgamesh, filho de Ninsun, está em seu túmulo
No altar das oferendas ele pesou o pão,
No altar das libações ele verteu o vinho.
Nesses dias partiu Gilgamesh, filho de Ninsun
o rei, nosso senhor, sem igual entre os homens,
Aquele que não faltou a Enlil, seu deus.
Ó Gilgamesh, senhor de Kullab, grande é a tua glória!
Termina assim a Épica mais
antiga da humanidade. Não só com a morte física do herói, mas com o seu
fracasso na procura pela vida eterna.
Gilgamesh morre junto com os
seus sonhos, mostrando assim que é humano. A partir dessa verificação, só lhe
resta voltar à sua amada Uruk, para deixar a marca perene de sua existência.
Morta a esperança, Gilgamesh
alenta nas suas façanhas, e por isso é que faz sua retrospectiva vital ao
barqueiro Ur-shanabi, único a testemunhar sua luta impossível contra o destino
efêmero dos humanos.
Por isso é que escreve na pedra
o que viveu na vida:
Ó Gilgamesh, foi-te dada a realeza segundo o teu destino.
A vida eterna não era teu destino.
Quando os deuses criaram o homem
deram-lhe como atributo a Morte,
mas a Vida, a Vida Eterna, essa, só ficou para eles.
Este poderia ser o epitáfio na
lápide de Gilgamesh, a gigantesca figura que, através dos séculos, marca a
despedida definitiva da Humanidade da escuridão impenetrável da Pré-História,
que ainda se entrevê nos detalhes do relato do sábio Utnapishtim do mundo antes
do Dilúvio Sumério.
Gilgamesh não atinge a
imortalidade fútil dos deuses sempiternos que, na sua imobilidade, mais
semelham a morte do que a vida. Ele atinge a imortalidade dos arquétipos
humanos na memória dos seus iguais, os homens. Obras materiais, como a muralha
de Uruk, persistem após 47 séculos de história de uma das regiões mais
conturbadas do mundo. Mas ele perdura pela sua constante procura da essência da
eternidade, pela consciência insigne de seu conhecimento, pelo que gravou na pedra
e impregnou na mente das gerações que o seguiram, cumprindo assim as proféticas
linhas finais do poema.
Ele perdura porque a história
de sua ciência, de sua força de vontade e de sua coragem nos foram transmitidas
– talvez por ele mesmo – e porque elas encarnam o ideal humano de uma vida onde
cada obstáculo dá origem a um novo esforço que o leva à contínua superação.
Como Modelo Literário, o Cantar teve as maiores
conseqüências imagináveis. Conhecido de toda a antigüidade, ele foi imitado e
inspirou obras-primas que conhecemos muito antes, como o Gênese do Velho Testamento
hebraico e a Odisséia.
O Cantar, conhecido
até poucos séculos depois de Cristo, perde-se com a decadência e
desaparecimento da Babilônia. Ele é reencontrado nas escavações feitas por
volta de 1860, por arqueólogos ingleses em Nippur e alemães em Uruk (atual Warka)
e depois na própria Babilônia. Assistimos, aos poucos, ao renascimento de Gilgamesh...
E, talvez, essa seja a chance que a história, reencarnando a "planta do
rejuvenescimento" de Utnapishtim, dá a Gilgamesh: viver sua segunda vida
na memória e na imaginação do homem moderno.
Ele conquistou a imortalidade
da espécie, devido à terça parte humana de sua constituição, a mesma que,
paradoxalmente, lhe impediu de atingir o eterno absoluto dos deuses.
Mas, não é isso mesmo o que o
poeta lhe promete no início do Cantar?
Mas, eterno é o poeta ou a
personagem?
Poeta e personagem
identificam-se e, enquanto nos contemplam, com a perspectiva de 47 séculos e a
condescendência que dá a longa intimidade com o transcurso milenar do tempo,
cada um eterniza-se no outro e na mente e na imaginação dos demais homens.
O autor:
O autor
nasceu numa pequena cidade, Melo, no Uruguai. Estudou na "Universidad de
No Brasil, em 1968,
torna-se Chefe de Pesquisas do Instituto de Energia Atômica
Aposentou-se em 1991 mas
continua publicando trabalhos de pesquisa. Professor Honorífico da
Universidade Autônoma de Madrid (1976), Acadêmico da Academia Campineira de
Letras e Artes, membro de várias academias científicas.
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